Qual será o futuro das nossas cidades?

Por Flávia Elias Batista (Gestora de Políticas Públicas)

A pandemia do COVID-19 tomou proporções inesperadas e surpreendeu os países do mundo todo. Com mais de 2 milhões de infectados e mais de 139 mil mortes em todo mundo, é evidente que, por mais que a sociedade já tenha vivido momentos como este anteriormente, como a pandemia de H1N1 em 2009 ou poliovírus em 2014, nenhum país estava pronto para lidar com a situação. 

As recomendações dadas para evitar a expansão do vírus vão de cuidados básicos, como lavar as mãos, ao isolamento social, maneira mais eficaz encontrada pelos países para reduzir a transmissão.

A rapidez e dimensão com que o vírus se espalhou demandou da sociedade uma nova forma de se organizar e uma mudança brusca nas rotinas diárias. Empresas tiveram que se adequar ao home office, os governos tiveram que desenvolver ferramentas de trabalho à distância, escolas suspenderam as aulas, comércios e serviços não essenciais fecharam suas portas temporariamente, serviços essenciais mantiveram-se operantes desde que seguindo recomendações. 

O que mais tem-se apresentado são soluções e futurologias, desde profissionais da área saúde à economistas, prevendo cenários de um mundo pós pandemia, prevendo mudanças no comportamento social, com uma expectativa de um mundo mais colaborativo, onde as pessoas pensam mais no coletivo e não no individual, até uma profunda mudança nos aspectos econômicos com uma preocupação exacerbada com a economia em prol do social. A impressão é que essas previsões são sobre dois pólos distintos: o otimismo e o pessimismo, buscando soluções simplistas para uma situação que traz consigo uma complexidade de fatores.

Mas afinal, qual será o futuro das nossas cidades? Como responder a uma pergunta sobre o futuro se nem ao menos pensamos no presente? O que já podemos observar sobre a pandemia até esse ponto passa por muitas fases de forma conectada. Observa-se a posição estratégica do Estado como papel central para evitar a transmissão do vírus, recomendando medidas de quarentena e isolamento. A importância de um sistema universal de saúde pública que deve garantir o atendimento de todos os cidadãos e, por isso, retomando ao ponto anterior, à adoção de medidas de isolamento para que não haja sobrecarga do sistema público de saúde, pois o COVID-19 é o protagonista da situação, mas muitas pessoas ainda dependem do sistema para o tratamento de outras doenças. O papel das universidade públicas para o desenvolvimento de pesquisas que colaboram para maneiras mais eficazes de evitar a transmissão, bem como desenvolver tratamentos que minimizem os efeitos da doença.

Com o fechamento temporário dos comércios e serviços não essenciais, muitos trabalhadores ficaram sem emprego e, nesse ponto, novamente o Estado como provedor de garantias e renda mínima para esses trabalhadores e/ou desempregados, para que os mesmos consigam realizar o básico para a sobrevivência.

Trabalhar de casa tornou-se rotina para uma parcela privilegiada da sociedade enquanto muitos trabalhadores não têm essa opção e continuam arriscando-se diariamente, utilizando transporte público e trabalhando fora para que outros fiquem dentro de suas casas.

Esse é o caso dos trabalhadores de aplicativos de entrega, que vivem desamparados por serem classificados como prestadores de serviços e as empresas de tecnologia serem apenas intermediadores entre o prestador e o cliente. Como exemplo, podemos citar o Ifood criou um fundo de assistência para os restaurantes mas, por outro lado, a empresa entrou com uma liminar para derrubar a decisão do Ministério Público do Trabalho de que o aplicativo deveria pagar um salário mínimo para os entregadores que estivessem no grupo de risco ou com suspeita de contaminação pelo novo coronavírus. Curioso observar como essas empresas utilizam ações de marketing trazendo uma roupagem de solidariedade, mas por outro lado continua reproduzindo o sistema econômico predatório e precarizando cada dia mais as relações trabalhistas, contribuindo para o aprofundamento das desigualdades sociais e econômicas. 

Esses trabalhadores arriscam-se todos os dias para que uma parcela da população fique no conforto de suas casas em isolamento. Mas, esse isolamento tem sido mesmo respeitado? Parte da população com esse privilégio têm-se mantido em isolamento? Infelizmente, não. Os últimos dados apresentados pelo Governo do Estado de São Paulo mostram um nível de isolamento de 50% enquanto o ideal seria 70%. 

Há de pensar também no impacto do isolamento na saúde mental de pessoas com depressão ou que tem tendência a se sentirem sozinhas, como os idosos. O que se tem feito para minimizar esses impactos? E a população em situação de rua e moradores de baixa renda que vivem em locais sem saneamento básico e abastecimento de água, como poderão adotar a medida mais básica de prevenção, que é lavar as mãos com água e sabão, se não dispõem nem de água e muito menos sabão? 

São tantas variáveis que é quase impossível achar uma solução mais adequada. O futuro, como bem mostrado com a pandemia, é imprevisível. E quanto ao poder público? Qual o papel dos gestores públicos na gestão dessas crises? Por mais que haja planos e políticas públicas preventivas, como o Programa Estadual de Prevenção de Desastres Naturais e Redução de Riscos Geológicos, nem o Brasil e nenhum outro país do mundo estava preparado para lidar com uma crise em escala global, bem como suas consequências.

Analisando a atual situação, compreende-se que o aprendizado tem sido diário e de acordo com o percurso, mas as tomadas de decisões devem ser feitas olhando para as medidas já tomadas em outros países que foram afetados antes e seguindo recomendações de órgãos internacionais como a Organização Mundial da Saúde (OMS). Logo, o papel do gestor público é fundamental para minimizar a crise e mitigar as consequências nos aspectos sociais, econômicos e ambientais. 

A relevância do gestor público, torna-se ainda mais evidente quando analisamos a importância dos governos locais, pois estão mais próximos da realidade, por isso é imprescindível que os governos municipais disponham de conhecimento técnico e recursos para fazer a gestão de emergências e crises de forma concisa. 

Para isso, os municípios devem pautar decisões com base em dados reais (número de habitantes, população de baixa renda, número de leitos disponíveis, número de médicos, equipamentos disponíveis etc.). É essencial que os municípios disponham de uma base de dados atualizada que pode ser feito diretamente pelo município ou ainda por meio de parcerias com órgãos estaduais, como a Fundação SEADE, ou com universidade próximas e o próprio Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e que aqui, enfatizo novamente a importância de ser uma base de dados consolidada, com uma série histórica que permita fazer análises, pautar decisões e elaborar políticas públicas de estado e não meras políticas governamentais. 

Garantir a comunicação clara e a publicidade dos atos governamentais para a população. Esse é um momento de dúvidas e incertezas, a população se vê impotente e amedrontada, além disso, as fakes News invadiram o bom senso e agravaram a situação espalhando boatos e mentiras que geram consequências negativas e perigosas. Por isso, ter meios de comunicação oficiais e realizar essa comunicação com uma linguagem adequada e acessível é essencial para a gestão de crise.

Conhecer e entender a realidade das cidades brasileiras resguardando as populações mais vulneráveis e garantindo que as mesmas sejam atendidas prioritariamente. 

Dispor de uma equipe técnica qualificada com capacidade analítica e de trabalhar mediante às incertezas e urgências que a atual situação demanda. 

Ter boa capacidade de governabilidade e governança para ter legitimidade das decisões tomadas, sempre pautadas por dados e em conjunto com instituições de pesquisa.

E quanto a forma de morar nas cidades, o que podemos observar até momento? Ao olhar as ruas vazias, os comércios fechados, a ausência do movimento, a tristeza é a primeira sensação a tomar conta. As cidades sempre foram um espaço ambíguo de convivência. A aproximação e o distanciamento, a inclusão e a exclusão, o centro e a periferia. Um local repleto de controvérsias e conflitos. Uma busca constante pela apropriação dos espaços. Essas dinâmicas ainda são observadas, e se perpetuarão após a pandemia. Mais do que nunca, a função social da propriedade torna-se um princípio relevante para a reduzir e mitigar desigualdades sociais históricas que já vinham se aprofundando mesmo antes da pandemia. 

Nesse breve ensaio buscou-se, pelo menos no contexto brasileiro, mostrar que a pandemia trouxe mudanças na sociedade e ao mesmo tempo, intensificou problemas históricos e estruturais das quais as cidades já vinham enfrentando. Um modelo econômico capitalista global que não se sustenta. Um modelo de cidade perversa e excludente. 

Que as cidades passarão por profundas mudança, é inquestionável – pois, já estão passando. Se essas mudanças serão positivas ou negativas, teremos uma breve noção ao decorrer do percurso, de acordo com as ações adotadas hoje. Tentar prever o imprevisível é só uma maneira de se esquivar da realidade da qual temos que enfrentar no presente. 

Brasil, 4 de maio de 2020.

Referências Bibliográficas:

Albuquerquer, Flávia. TRT-2 suspende decisão que obrigava iFood dar ajuda a entregadores. Agência Brasil, 2020. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-04/trt-2-suspende-decisao-que-obrigava-ifood-dar-ajuda-entregadores> Acesso em 20 Abr. 2020.

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em 19 Abr. 2020.

Decreto Estadual nº 57.512 de 11 de novembro de 2011. Institui o Programa Estadual de Prevenção de Desastres Naturais e de Redução de Riscos Geológicos e dá providências correlatas. 

Folha Informativa – COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus). Organização Pan-Americana de Saúde. Disponível em: <https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875> Acesso em: 19 Abr. 2020.

Ingizza, Carolina. ifood vai destinar R$ 50 mi em fundo para pequenos restaurantes. Exame, 2020. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/pme/coronavirus-ifood-vai-destinar-r50-mi-em-fundo-para-restaurantes-locais/> Acesso em: 20 Abr. 2020.

Isolamento social em SP é de 50%, aponta Sistema de Monitoramento Inteligente. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-04/trt-2-suspende-decisao-que-obrigava-ifood-dar-ajuda-entregadores> Acesso em: 20 Abr. 2020.

WHO COVID – 19. World Health Organization. Disponível em: <https://covid19.who.int/> Acesso em 19 Abr. 2020.

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